quinta-feira, 10 de junho de 2010

A janela e a nuca

Sem querer
a superfície estaria
no labirinto do ouvido

Na esquina, alguém pôde desejar essa música, esse sopro que comparece numa noite de domingo? Nesses dias que são o mesmo, ela toca ao fundo, onde se irrompem algumas perturbações: a gente esparsa, aparentando-se, como se praticassem humanidades impecáveis.
Penso poder aparecer, de repente e casual, Fred Astaire na chuva. Mas não enquanto houvesse a janela em que me sustento, na atenção de um negro a catar latas, que me serviram inscritas, por um momento. Não enquanto houvesse aquela nuca preta distinta, e sua preconcebida fome, com nojo de si, ou do lixo, ou sem nojo algum, vai saber. Não pretendo estar ao seu alcance. Incide-me a pele, e eu me atenho ao fato – o bastante razoável – de que tal composição seja praticamente irreversível.
Alguém poderia dançar, não obstante. A propósito, alguém poderia dançar? Por outro lado não saberia. Não saberia precisar qual seria eu, ainda que pudesse voltar, com esta mesma forma, aos experimentos do seu germe. Ninguém jamais conhecerá esse indigente e suas vísceras desnecessárias
enquanto a confirmação se faz em plano de fundo – a imagem de Um sobre a imagem dos outros / a imagem do Outro sobre a imagem de uns

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Cecília Meirelles

É difícil fazer alguém feliz, assim como é fácil fazer triste.
É difícil dizer eu te amo, assim como é fácil não dizer nada
É difícil valorizar um amor, assim como é fácil perdê-lo para sempre.
É difícil agradecer pelo dia de hoje, assim como é fácil viver mais um dia.
É difícil enxergar o que a vida traz de bom, assim como é fácil fechar os olhos e atravessar a rua.
É difícil se convencer de que se é feliz, assim como é fácil achar que sempre falta algo.
É difícil fazer alguém sorrir, assim como é fácil fazer chorar.
É difícil colocar-se no lugar de alguém, assim como é fácil olhar para o próprio umbigo.
Se você errou, peça desculpas...
É difícil pedir perdão? Mas quem disse que é fácil ser perdoado?
Se alguém errou com você, perdoa-o...
É difícil perdoar? Mas quem disse que é fácil se arrepender?
Se você sente algo, diga...
É difícil se abrir? Mas quem disse que é fácil encontrar
alguém que queira escutar?
Se alguém reclama de você, ouça...
É difícil ouvir certas coisas? Mas quem disse que é fácil ouvir você?
Se alguém te ama, ame-o...
É difícil entregar-se? Mas quem disse que é fácil ser feliz?

terça-feira, 30 de março de 2010

CELEBRAÇÃO ... Primeira Parte: 23 de Março - De foro íntimo

Como sou pouco religiosa, vivo inventando meus próprios rituaizinhos pra simbolizar grandes e pequenos acontecimentos. Assim, me faz falta marcar certas datas de um modo especial. Por isso, sempre procurei comemorar meu aniversário como um dia pra fazer o que me deixasse mais feliz dentro das minhas condições naquele momento.

Hoje é uma terça-feira, dia normalmente bastante atribulado pra mim. Hoje, 23 de Março, está especialmente difícil de ter algum tempo pra descanso ou diversão. Então é que eu me dou conta. Repouso e lazer já não me deixam mais tão feliz assim, não a qualquer custo. E inauguro, com esses meus 30 anos cravados, uma outra idéia de celebração da vida: que nem tanto é de risos e de prazeres. Mas é de se dar importância ao que tenha mais importância.

Hoje, devo admitir, reconheço que a minha felicidade independe de tais ou quais condições. Depende de escolhas, o que muito mais tem de renúncia do que de gratificações.

Por hoje, não posso convidá-los pra nenhuma festa. Um dia bem comum. Um entre outros que andam bem difíceis. Mas quero que vocês todos sintam-se abraçados, porque fazem parte (de um jeito ou de outro, uns mais outros menos, uns bem mais outros bem menos) do meu amor à Vida ...

Assim, com esse abraço, ainda que distante, nada que hoje tivesse mais importância realmente me faltou. Nem mesmo a festa que eu tanto queria lhes oferecer. É uma festa que se realiza nessa lembrança da intenção de estarmos juntos. Sem hora marcada, nem local de encontro, porque é pra todo mundo estar presente. Até mesmo quem faz falta, sem remédio. E também os que fazem falta, sem saber. Além dos que sabem que fariam falta se comigo não estivessem. Ou deveriam saber. E dos que estão sempre comigo, mesmo faltando.

Para cada um desses e de outros, meu desejo de mais vida.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

it

Tenho uma casa que se encerra no mesmo ponto em que me acomete de sua concretude. Tenho essa casa que nem ouso pensar. Pensando, não mais a teria, havendo de se despedaçar na procura por antes e depois, na intenção de se ter e estar contida.


É uma casa onde não se acorda, onde não se esbarra nos tempos. Acordar, traria a partida de meus irmãos, e em minha casa só pode haver inteiro. É uma casa de sonho que não se deixa partir.

A casa é própria, porém. De forma que as coisas não têm seu lugar. Só enquanto as concebo, o que sempre me espanta, pois as coisas se mutilam e se confundem antes de serem concebidas. As coisas assumiram em minha casa o hábito de não se acomodar. As coisas me flagram por acaso.

A casa é própria, porém, então as coisas me dizem “seja feita a sua vontade”. As coisas nem me acreditam, mas dizem assim porque temos essa espécie de humor, eu e meus pedaços, quando estamos bem dispostos a falar sobre isso. “É uma piada de mau gosto ou uma lição de otimismo?” alguém me quis saber entre outras coisas e eu resolvi não responder: “é uma piada de otimismo e uma lição de mau gosto”, disse qualquer coisa eu, o que poderia denunciar a dissimulação de uma co-respondência. Até que me faz rir. Deixando pra lá.

Ainda devo entender que é uma casa muito própria; própria o suficiente para que, por hora, se admita chão de ser toda, uma só e única coisa que pudesse ser concebida, mas nem ouso crer, pois não mais a teria – me saltaria aos olhos o delírio avesso do meu umbigo.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

DEDICATÓRIAS

seus olhos são escuros
como respostas aguardando
mergulhadas no fundo
onde meus olhos procuram
suas mãos no instante
em que me deflagro:

avanço ao território
do seu alcance futuro
desperto outro chão
que te sustentará, me consumindo
e te consumirá, me sustentando


mas em nossa casa não quero um jardim. Quero terra úmida, sob sombras e frutas frescas. Terra de mato e raízes, que pisaremos descalços, entre plantas e pássaros e gente mais miúda, sorrindo proliferando-se, e sentindo a respiração o bastante.

Depois do espelho

, a travessia do estado de espelho. Depois do batismo da alienação (nosso sacramento moderno desde Hegel), o segundo batismo seria aquele que nos transporta para além da alienação, para a alteridade pura.

(Baudrillard)

As formigas e eu

... frenéticas, no trabalho silencioso da casa. Ocorre ter aceitado cuidar de ser mulher, preparando outra pessoa, por alimentar, é evidente, uma essa veia antiga, como daquelas - que se geraram varizes nas abençoadas pernas de minhas avós.

Não bem assim tão voluntário quanto se pretendia até meu próprio berço. Naturalmente seria, é o que se dizia. Digo eu, consequentemente. Como após o salto tem-se o chão a pisar. Fim de ato (rima coincidente) já escolhido, por um esforço dispendido. Admito, há nisso um bom tanto de determinismo arrependido, que nem me faz rir ou chorar. A remediar, pode ser, uma carência de fé incoercível. Mas é puro leite derramado, que não secou.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Para Lou Salomé...

...e pra você:

Mas eu vou sempre para ti
Com todos os meus passos
Porque quem sou e quem és
se não nos entendemos?

(Rainer Maria Rilke)

...

Se coubesse o encontro no ato, aí me encerraria harmônica. Mens sana in corpore sano, essa coesão tão satisfatória. Se coubesse te tocar além do homem, comum ou não te aguardaria por inteiro. Mas devo perecer antes de te alcançar durante a resposta. Atirar-me por janelas às ruas que todas se figurariam-me estranhas, como um lugar que se arranca de um sonho.

Por mais um dia perco as horas entre uns e outros significantes, como coisa que se valha, ou que se falha, a merecer certa atenção disposta. Enquanto isso devo perecer, e me livrar de um todo acabamento, a despeito de qualquer veredicto apropriado, a despeito dessa identidade em plena decadência. A despeito, sobretudo, a despeito.


Eventualmente
passo a revogar o absoluto em tantas substâncias circunscreventes e determinantes inscrições de um destino. Que haveria eu de contemplar – subindo a construção como se fosse lógico – não transcorresse por me dissipar.

...

Nós fomos longe, eu diria. Porém, digo antes, não há para onde ir – muito além da espera no escuro
por alcançar outra superfície
como se fora sua própria
a pele atrás do espelho.
Tudo se passa bem apropriado, para que haja uma lacuna de si-em busca, lá mesmo onde incidem-se os reflexos, que se concretizam sob um parecer. E lá se esvai meu amor... ejaculando-se do umbigo de sonho, para o umbigo de carne, daí partindo-se, intruso me cabe.
Fomos longe, devo admitir, se longe são as margens da nossa eqüidistância, essa ausência em recíprocas. Longe é não consumar a travessia. Longe é faltar a chegar.
Sigo aguardando um instante que me acometa de beleza. Espero à espreita, no recuo de quem aguarda o corpo de uma sombra; no suspense da presença de um esboço sem contornos. Vivo, no desejo do silêncio de seu abalo.
Enquanto me derreto sobre espectros, que converto em murmúrios a seco, gestante de abortos afônicos e verborragias natimortas. Estou lacrada, como um veneno que rasteja sobre algum tal próprio umbigo, que é um sonho de sangue! Salto na poça, pois sou mais o ventre a que esse umbigo é despido.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Por outras palavras

Tentar encerrar o assunto: quer dizer, publicar o que já faz tempo, de vez. Na minha desmesurada e patética pretensão, penso que tenho aí algo do tipo: Aforismos poéticos ou Poesia aforística. Ou, quando crescesse queria ser Nietzsche. E ter bigodes e nenhum sucesso com as mulheres. Mas se eu fosse homem acho que eu seria um saco. Humor infame de merda. Quero dizer que duvido escrevesse uma linha, embora certas coisas, como disse a um amigo, só dá pra escrever quem tem saco. Que se coce. Infame. Sendo mulher, não tem a mínima graça. Se escolheria ter um? De-formalguma! Só o que invejo dos homens é quando sabem brigar. De resto, sem pau nenhum a gente bem que se vira. E se vira bem melhor às vezes... perdendo para o gosto que se tem no uso deles. O que chamam por aí fa-lo-centrismo. Condição que me faz A falta. Nada de histeria assim tão clássica. Penis normalis é receita errada. O que sinto falho é meu espaço vago: desse buraco que desejo o avesso, ultrapassar-me do orifício morno, que me reduz todo o mais de um corpo, de uma voz, de silêncios e respostas e de espaços. Tantas umidades a se viver além do coito... tantas paixões a se pulsar além dos pares... tanta beleza a ser fruida, que não tenha sexo... e tanto a ser parido que não seja prole... e tanto a ser cuidado que não sejam eles... Eles, os homens, não crescem muito, além do entre as pernas. Eles, eu não os invejo, nem os recuso. Nós, as mulheres, eu não nos renego. É só que esse enredo todo que nos divide e que nos afasta, e que por vezes nos atrai e nos une, ao sexo oposto ou ao mesmo sexo... é que esse assunto de sexo oposto ou mesmo sexo... ah! tem hora na vida que faz a gente desperdiçar tempo e latim demais. E o pior, é que ainda hoje, agora mesmo, jamais deixou de ser necessário.